terça-feira, 2 de abril de 2024

«Lições de Grego» de Han Kang - Opinião

Não aprendi grego, mas como se costuma dizer, vi-me grega para chegar ao fim deste romance labiríntico e enigmático de Han Kang. Não chegam a ser duzentas páginas, mas o leitor fica perdido entre as aulas, o mutismo, as ideias complexas, a dificuldade de apanhar o fio à meada. Chega a faltar o ar!

É que as vozes mudam e o leitor tem alguma dificuldade em perceber quem é quem, embora se perceba que o peso do outro e de outras fases da vida sejam tão ou mais importantes que o presente, em que um homem, o professor de grego, está a cegar e uma mulher, a aluna, encerrada no seu mutismo, não toma a palavra. 

Nesse aspecto, a narrativa está bem conseguida, ela não fala e quer sumir-se para dentro de si e da escuridão das suas roupas negras, então a narração é assumida por um narrador que tudo sabe. Que fala por ela.

“A única pessoa que sabia que a sua vida estava violentamente dividida em duas era ela própria. As palavras que anotava na parte de trás do diário contorciam-se por vontade própria, formando frases estranhas. De vez em quando essas palavras metiam-se no sono como espetos…”

No caso do professor, ele quer falar, precisa falar, então é-lhe dada voz enquanto recorda a fuga para Alemanha e o regresso à Coreia do Sul, um pai, uma mulher…

sábado, 16 de março de 2024

«Um Grito de Amor Desde o Centro do Mundo» de Kyoichi Katayama - Opinião

Enquanto lia este livro, cruzei-me com uma frases que anotei aquando da leitura de «Os Abismos» de Pilar Quintana: "todas as minhas histórias preferidas trazem um aviso qualquer" e eu acrescentaria, todos os livros que leio, goste muito deles ou não, trazem frases que desde o momento que são lidas me ficam na cabeça.

"É surpreendente o quão puro te tornas quando pensas que o futuro não é possível, mas, quando percebes que estás vivo, os teus desejos renascem."

Eu não conhecia o fenómeno em torno da história de Sakutarô e Aki, a série mangá e o filme, e nessas adaptações está muito da essência do livro: a filosofia de vida dos adolescentes, as reflexões que fazem e as atitudes perante o confronto com a morte precoce. Haverão por certo diferente formas de olhar ao enredo, é previsível e já um tanto gasto, mas como disse, a essência está nas conversas entre os personagens, seja ente Sakutarô e o avô ou mesmo entre os jovens amantes, ainda assim foi um livro que me cativou pouco, embora tenha gostado da forma que Katayama encontrou para descrever os personagens e dar espessura aos sentimentos, sensações e relações.

terça-feira, 12 de março de 2024

«A Axila de Egon Schiele» de André Tecedeiro :: Opinião

 


“(…) Mas antes disso, esfreguei as mãos na terra.

Não teria conseguido se não estivessem vazias.”

 

Se oscilarmos pela poesia de André Tecedeiro, ao sabor dos humores do dia-a-dia, encontramos sempre algo que nos anime. Ou que nos faça pensar. Não propriamente no sentido de desarranjar a cabeça. São palavras simples. Assim parecem.

“Cada um lê no poema,

o poema que traz em si.”

sábado, 24 de fevereiro de 2024

«O assassino cego» de Margaret Atwood - Opinião

“A única forma de escrever a verdade é partir do princípio que aquilo que se escreve nunca vai ser lido por ninguém. Nem por outra pessoa, nem mesmo nós próprios, mais tarde. De outra maneira começamos a desculpar-nos a nós próprios.”

Esta é a premissa de «O Assassino Cego» onde Iris Chase escreve para se confessar, mas não pede perdão. Narrada ao ritmo da sua velhice: “cada vez mais me sinto como uma carta – depositada aqui, recolhida ali. Mas uma carta que não é dirigida a ninguém.” Ou é, nem que seja a si mesma, enquanto se ouve a recontar, detalhadamente os acontecimentos. É uma caça às recordações.

“Um pássaro vivo não é a mesma coisa que os seus ossos etiquetados”

Nas primeiras cinquenta páginas temos elementos-chave para toda esta narrativa complexa e descritiva. 

As mulheres sem língua, inchadas por aquilo que as obrigam a calar, é apanágio da época. Calar as mulheres, casá-las para salvar a honra e as fortunas depenadas das famílias, entregá-las aos conventos ou à religião… tudo se justificava pelo papel submisso e secundário da mulher numa sociedade onde “havia muitos deuses. Os deuses dão sempre jeito, justificam quase tudo…” ainda assim, a narradora-protagonista, Iris Chase diz que à luz quente de uma chama, quando confrontados com a verdade não somos mais que ossos e “Sabe Deus que ossos roí durante o sono.”

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

«O vento mudou de direção» de Simone Duarte :: Opinião

Os ataques terroristas às Torres Gêmeas geraram ondas de pânico e pavor, de alterações à segurança e ao entendimento que os americanos (e o resto do mundo) têm face aos árabes e aos muçulmanos. Mas mais que tudo, o 11 de Setembro gerou uma Guerra ao Terror levada a cabo pelos Estados Unidos com o maior contingente de sempre a invadir e a permanecer num país estrangeiro, causando uma destruição massiva e um terror tentacular que se estende a diversas geografias para além do Afeganistão, do Iraque e do Paquistão. 

Em «O vento mudou de direção», Simone Duarte narra isso mesmo, a realidade tentacular dos efeitos colaterais de um atentado com consequências devastadoras: "Os americanos tiveram um 11 de Setembro. Nós continuamos a viver o nosso 11 de Setembro até hoje."

Esse «nós» são sete pessoas específicas que a jornalista entrevistou e conheceu, denunciando aqui como a realidade destas pessoas, representa infâncias, juventudes, profissões, famílias, sonhos, futuros... países, totalmente estilhaçados e hipotecados. Vítimas esquecidas, perdidas entre o medo e o terror paralisante de quem teve a guerra à porta de casa. Vítimas resgatadas mas atiradas para os meandros de uma imigração forçada. Refugiados para quem mudou tudo e não encontram referências em nada. Cidadãos de países em risco de se transformarem para sempre e com eles, o destino de todas estas pessoas.

"Entrou no país com um visto que só tinha validade de 10 dias. O prazo havia expirado e ela precisou de decidir entre voltar para Cabul sob a ameaça diária de atentados suicidas ou ficar num país em que o medo não a paralisaria. Não haveria outra hipótese. Só não imaginou que passaria esta primeira noite na cadeia." (Gawhar, Viena 2016)

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

«Poeta Chileno» de Alejandro Zambra - Opinião

A forma como chegamos a cada livro é quase tão importante como a leitura em si. Cada vez mais acredito que as expectativas e as histórias em redor de um livro, tema ou autor, podem determinar o rumo de uma leitura. Tanto que por vezes nem lemos o que lá está. Lemos o que achámos que íamos ler. Parece complexo, mas é essencialmente o poder da influência e claro, da auto-sugestão. Quando a coisa começa a correr de outra forma, a opinião enviesa e a leitura sofre com isso.

Quando ouvi falar deste livro, pela voz de Giovana Madalosso em conversa com Mariana Alvim, a forma como a autora brasileira descreveu aquela relação fragmentada entre pai e filho, eu fiz (só pode!) todo um desenho do livro na minha cabeça com o bónus de ter um gato à mistura. Sobre o livro propriamente dito eu não fui ler nada, a recomendação sentida e entusiasta chegou, especialmente porque eu tinha lido há pouco - e gostado muito - de «Tudo pode ser roubado», portanto o livro de Alejandro Zambra só podia ser bom.

E foi! 

Só não foi mais por culpa desta impaciência que eu às vezes deixo que tome conta das leituras, mas que felizmente já se amenizou quando eu vou escrever e quando me deparo novamente com o texto, com detalhes que eu mesma sublinhei, com passagens que eu marquei, toda uma selecção de momentos que me dão um novo olhar sobre o livro. É um olhar melhor. E aí apercebo-me de que gostei mais ainda da leitura e li efectivamente o que lá estava. A citação abaixo é a prova disso.

domingo, 4 de fevereiro de 2024

«Pequena coreografia do adeus» de Aline Bei – Opinião

Uma garota que deseja ser uma música bonita que desparece quando é rádio é desligado, pede ao espelho que não se apaixone por ela. Mas cedo vai descobrir que mesmo sem espelho, mesmo invisível, as são coisas existem e doem. E que mesmo as coisas bonitas se fazem em cacos, como aqueles que colecciona.

“as brigas dos meus pais foram virando o chão onde pisávamos.
o silencio da casa era sempre uma fermentação.”

Decepção atrás de decepção.

“(…) uma conversa em família
Nunca foi possível, não em minha casa
Lá somos três solitários
Irreversíveis
Gravemente feridos
Da guerra que travamos contra nós.”

Abandono atrás de abandono. Numa solidão que povoa tudo, Júlia cresce.

“sentia-me um verdadeiro Pêndulo: ora caminhando
solenemente para a presença materna, ora fugindo
de qualquer possibilidade de mãe.”

Caco atrás de caco, o Pêndulo sente-se um amontoado de destroços, mas mesmo os cacos fermentam, na linha ou cola que os une e mesmo nos destroços entra luz e gera vida e a família cresce mesmo só com uma. Ela! Júlia, cresce e floresce e vai escolhendo quem quer ter por perto, aprendendo a gerir distâncias e expectativas.

“os estranhos não nos doem porque ainda não nos dececionaram
e se mantivermos tudo a uma boa distância: seguirão sendo
essa doce incógnita.”

Porém a vida não pode acontecer com tudo à distância, é preciso ir ensaiando pequenas coreografias de adeus.